Sumário: 1. Considerações Preliminares. 2. O Modelo Processual Brasileiro. 2.1. Neoliberalismo Processual. 3. Paradigma constitucional para atuação do Judiciário. 3.1. A Celeridade processual e a decisão justa. 4. O Ativismo Judicial na Fase de Formação do Processo Civil. 4.1. A extinção prematura do processo e irregularidades sanáveis.4.2. A formação do processo e a reforma já perpetrada. 4.2.1. O julgamento liminar de mérito devido à prescrição. 4.2.2. Uma recente mudança: o julgamento “antecepadíssimo”. 5. O que vem por ai: O Projeto de Lei do Senado. 6. Conclusão. 7. Referências.
RESUMO: Este artigo é o resultado de um estudo crítico e científico sobre a atuação judicial ex-officio, na fase de formação do processo civil. Trata-se de ponderação jurídica sobre a necessidade de participação efetiva dos sujeitos na construção dos provimentos.
Critica-se o modelo processual atual, impulsionado pela política neoliberal. A busca pela celeridade deverá levar em conta a prevalência dos ditames democráticos. Não poderá haver mitigação do contraditório.
Conclui-se por entender como inconstitucionais alguns dispositivos da reforma processual já perpetrada e apresenta considerações sobre o Projeto de Lei do Senado, de Código de Processo Civil, n. 166/2010.
PALAVRAS-CHAVE: neoliberalismo; processo civil constitucional; democracia; dignidade; justiça; celeridade; ativismo judicial; contraditório, direito fundamental; participação; sujeitos; legitimidade; reforma processual.
ABSTRACT: This paper is the result of a critical and scientific study about the ex officio judicial action in the formative phase of the Brazilian civil procedure. It is a juridical ponderation about the need for legal effective participation of the subjects in the construction of legal provisions.
It criticizes the current procedure model, since it is driven forward by neoliberal policies, and advocates that the search for celerity must take into account the prevalence of democratic precepts. There can be no mitigation of the legal principle of contradiction.
Then, in conclusion, this paper takes as unconstitutional some provisions of the procedural reform already perpetrated, and presents considerations on the Senatorial draft bill for the Code of Civil Procedure n. 166/2010.
KEYWORDS: Neoliberalism; Civil Constitutional Procedure; democracy; dignity; justice; celerity; judicial activism; fundamental right; participation; subjects; legitimacy; procedural reform.
1. INTRODUÇÃO
Neste artigo faremos uma crítica à atividade judicial solitária, na fase de formação do Processo Civil. Propõe-se um contraponto sobre os princípios processuais e constitucionais – na busca da participação efetiva de todos os sujeitos do processo – frente ao avanço desta forma de atuação judicial.
Nossa problemática é a crítica de que o juiz possui ampla liberdade de praticar atos ex ofício: 1) O juiz poderá extinguir o processo de plano, por entender que o autor não utilizou procedimento correto? 2) Existem, na atual legislação, previsões de atos de ofício, antes da citação, inconstitucionais? 3) O Projeto de Código de Processo Civil vem reforçar o protagonismo judicial?
O processo civil constitucional deve ser conduzido de modo a se obter provimentos construídos através da dialética do contraditório. As inovações acolhidas pela legislação processual civil estabelecem normas que extrapolam ao campo da inconstitucionalidade, por falta de contraditório. O Projeto de Código de Processo Civil é uma esperança de combate.
Na academia e na utilização dos recursos jurídicos cabíveis, devemos barrar o crescimento de atos judiciais como os que aqui discutiremos, cientificamente. Sustentados pela Teoria do Processo Constitucional, devemos estabelecer limites ao Poder Juiz, concernentes aos ditames do Estado Democrático de Direito.
2. DA SUPERAÇÃO DO MODELO PROCESSUAL BRASILEIRO
Existem dois modelos primordiais, na história: o liberalismo processual e a socialização processual. O primeiro tentou garantir o domínio das partes sobre um processo predominantemente escrito e guiado pelo Princípio Dispositivo. Já o modelo da socialização processual visa o protagonismo judicial, de forma oral e concentrada, combinada com a mitigação do Princípio Dispositivo, na busca da compensação das desigualdades sociais.
Entretanto, há quem defenda (NUNES, 2010, p.175), como nós, que, no Brasil, para que não hajam ingerências no processo, consideradas nefastas pelo modelo de mercado liberal, parcela do movimento de socialização se desnaturou para uma perspectiva pseudo-social (neoliberal) que garantiria uma aplicação do direito em larga escala (decisões padronizadas), não pormenorizadas (…)
No final da década de 1980, veio à tona no Brasil o neoliberalismo que exige mudanças econômicas e políticas, com regras de mercado voltadas a diminuição da interferência do Estado na vida privada. O governo brasileiro teve que protagonizar uma releitura das regras da Constituição Federal de 1988, recém promulgadas, a fim de que as medidas exigidas pelo mercado financeiro pudessem se concretizar.
Iniciou-se a busca da uniformidade das decisões, não obstante o caso concreto; alta produtividade de decisões e sumarização da cognição.
E mais: qualquer discurso garantista, fruto de uma perspectiva democrática constitucional, é visto e desnaturado pelo discurso dominante como a defesa de uma perspectiva formalista e burocratizante, como se um processo democrático que respeitasse toda a principiologia processual-constitucional também não pudesse ser célere e funcional. Trabalha-se, de modo recorrente, com uma lógica de eficácia sem possuir qualquer compromisso com o aspecto comparticipativo e de correção normativa com que o sistema processual deve atuar. (NUNES, 2010, p.163)
Trata-se de um terceiro modelo processual que não oferece perigo a nova ideologia e, na mesma medida, não tem comprometimento com a efetivação de um Estado Democrático de Direito. [2] Esvazia-se o papel público do processo, vez que os espaços criados não estimulam a problematização das questões, além de permitir a prevalência de entendimentos solitários, que podem abarcar determinada política exigida pelo poder dominante do mercado.
3. PARADIGMA CONSTITUCIONAL PARA ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO
Inobstante às exigências de mudanças promovidas pelo neoliberalismo, urge buscarmos a concretude o Estado Democrático de Direito, a balizar a atividade do poder-juiz. Sendo imperioso este paradigma, nitidamente consagrado no 1º e 3º da CF/88, faz-se necessária a análise do sistema processual em face da própria Constituição. Vejamos:
Certo é que o reconhecimento expresso dos direitos fundamentais nos textos constitucionais e ordenamentos jurídicos infraconstitucionais contemporâneos permitiu a criação de um bloco compacto de salvaguarda das pessoas e de suas liberdades contra quaisquer atos de abuso de poder ou de arbítrio provenientes do Estado, incompatíveis com o princípio maior da vinculação de qualquer ato estatal ao Estado Democrático de Direito, sobretudo o ato jurisdicional (DIAS, 2010, P. 70).
Entende-se que o poder jurisdicional é constitucionalmente organizado, delimitado, exercido e controlado[3] conforme as diretivas do Princípio do Estado Democrático de Direito (DIAS, 2010, p. 35)[4].
O processo deve se constituir na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura. Seus provimentos devem ser construídos com a garantia de participação igual, paritária, simétrica daqueles que receberão os seus efeitos (SOARES apud GONÇALVES, 1992, p.171). O ato de decidir não pode ser exarado unilateralmente pela clarividência do juiz, dependente das suas convicções ideológicas, mas deve, necessariamente, ser “gerado na liberdade de participação recíproca, e pelo controle dos atos do processo (SOARES apud GONÇALVES, 1992, p.188).
Neste paradigma, destaca-se a Teoria do Processo Constitucional. Se revela inegável a importância do contraditório para o processo justo, princípio essencial que se encontra na base do diálogo judicial e da cooperação. O provimento só pode resultar do trabalho conjunto de todos os sujeitos, restabelecendo o caráter isonômico do processo.[5]
3.1. Processo Constitucional e dignidade da pessoa humana
Garantindo-se a aplicação dos princípios consubstanciados no Estado Democrático de Direito é que o mesmo se realiza. As garantias constitucionais é que permitem à jurisdição afeiçoar-se àquilo que de fato é importante ao regime democrático (DINAMARCO, 1986, p. 151).
E neste desiderato é fundamental o respeito ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana[6] que permeia todo o ordenamento jurídico que o concebe como fundamento. Conseqüentemente, o processo constitucionalizado[7] é verdadeira efetivação de um direito fundamental: o contraditório. Cada direito fundamental é elemento estreitamente ligado a efetiva vida digna, explicitando e projetando a dignidade da pessoa.
O superprincípio[8] (PIOVESAN, 2003, p. 392) deve ser entendido como ponto de partida e de sustento do ordenamento, visceral e indissociável dos direitos fundamentais. Destarte, há uma tríade interdependência entre Dignidade da Pessoa Humana, Direito Fundamental e Constituição. E sob a égide da democracia há uma supremacia da Dignidade que é indissociável dos Direitos Fundamentais. Sendo o contraditório um direito fundamental constitucional:
Há uma íntima conexão entre a violação dos princípios processuais, como no caso de inobservância do contraditório – que é o impedimento da participação no processo em simétrica paridade – e lesão grave à dignidade humana. Os direitos fundamentais são expressões do princípio da dignidade e a violação de qualquer um deles importa no impedimento da plena vivência digna.
(…)
Ora, em caso de desequilíbrio na oportunização participativa das partes em igualdade de condições na construção do provimento é facilmente perceptível a usurpação da dignidade de uma delas. O processo amparado em princípios constitucionais, como o contraditório, é garantia de sustento da condição digna. (TAVARES, 2008, p. 298)[9]
O objetivo constitucional de concretização de uma vida digna exige a efetiva participação dos sujeitos na construção dos provimentos. Isso ocorre alicerçando o sistema em garantias de participação igualitária, com atividade efetiva no processo, de forma co-responsável.
3.2. A Celeridade processual e a decisão justa.
É comum entenderem como alcançada justiça somente quando for eficiente, rápida e acessível. Entretanto, deve-se ter a preocupação em não se incorrer em abusos de autoridade, de modo a submeter o cidadão a decisões antidemocráticas[10]. Afinal, a efetividade da cidadania, e do próprio Estado democrático de Direito, decorre do aceso ao processo, instituição capaz de garantir o controle e fiscalização.
O discurso neoliberal de produtividade e rapidez afeta o fluxo processual, com decisões que não primam pela adequação constitucional. Não há uma busca pela legitimidade que, por sua vez, ocorrerá, somente, com o provimento partindo da análise das especificidades do caso concreto. [ 11]
Noutra medida, com a Emenda Constitucional n. 45 veio à baila o Princípio da Duração Razoável do Processo, inciso LXXVIII do art. 5º da CF. Gerou-se, assim, uma série de inovações infraconstitucionais que primam pela rápida resolução dos conflitos, ao arrepio de princípios fundantes do Estado de Direito Democrático[12]. Aniquila-se o contraditório, subtraindo-se das partes o poder de convencer o órgão jurisdicional do acerto de seus argumentos. Em verdade, a pretexto de atingir a celeridade processual o legislador sufoca o caráter dialético do processo, em que o diálogo judiciário, pautado pelos direitos fundamentais, propicia ambiente de excelência para reconstrução da ordem jurídica e conseguinte obtenção de decisões justas (MITIDIERO, 2006).
Todavia, o que deve defender-se é a existência de um tempo razoável para o acertamento das questões controvertidas e para a atuação dos sujeitos de maneira comparticipativa para formação dos provimentos, a significar que devem ser evitadas dilações indevidas do processo. Estas, em sua maioria, se referem a períodos prolongados de paralisia procedimental, nos quais não se praticam atos no processo ou o são fora da previsão legal do tempo em que devem ser realizados – etapas mortas do processo – (DIAS, 2010, p. 158)
A defesa cega da celeridade[13] está indo de encontro ao Estado Democrático de Direito, que exige decisões com qualidade e, quanto melhor o espaço de diálogo entre as partes, existindo maiores oportunidades de participação, melhores serão as decisões judiciais. Afinal, a decisão não se qualifica como justa pelo critério da rapidez, e se a justiça não se apresentar no processo não se poderá, também, na sentença. (GONÇALVES, 1992, p. 125)
4. O ATIVISMO JUDICIAL NA FASE DE FORMAÇÃO DO PROCESSO CIVIL
Realmente é importante a celeridade do processo, podendo ser benéfico o Ativismo Judicial, impulsionando o processo para que haja maiores fundamentos para o convencimento do juiz. Conexo o entendimento (BEDAQUE, 2003, p. 53):
A necessidade de o juiz assumir efetiva posição de condutor do processo, com ampla participação no contraditório desenvolvido pelas partes, corresponde à tendência unânime da moderna ciência processual. Ampliasse, dessa forma, a noção do contraditório, para incluir também a efetiva atuação do juiz no desenvolvimento da relação processual.
Com efeito, no processo civil atual reclama-se, portanto, que o Juiz não seja mais impassível diante do caso concreto. O juiz deve disponibilizar de poderes maiores, a fim de que eventualmente supra a deficiência de uma das partes. [14] DIDIER JÚNIOR (2005, p. 75 e 76), ampara:
(…) chamado princípio da cooperação, que orienta o magistrado a tomar uma posição de agente-colaborador do processo, de participante ativo do contraditório e não mais a de um mero fiscal de regras.
Essa participação não se resumiria à ampliação dos seus poderes instrutórios ou de efetivação das decisões judiciais (arts. 131 e 461, § 5° , CPC). O magistrado deve adotar uma postura de diálogo com as partes e com os demais sujeitos do processo: esclarecendo suas dúvidas, pedindo esclarecimentos quando estiver com dúvidas e, ainda, dando as orientações necessárias, quando for o caso. […]
Entretanto, a premissa não está sendo democraticamente aplicada. Vem ocorrendo, sim, um crescente aumento no número de decisões solitárias, mormente na fase de formação processual, ou seja, nem mesmo iniciado o processo dialético de construção democrática e comparticipativa de provimentos.
4.1. A extinção prematura do processo e irregularidades sanáveis
Recentemente fomos surpreendidos, em militância no foro federal, com uma decisão respaldada no art. 295, V do CPC, pelo indeferimento de nossa petição inicial, sem prévia intimação para emenda, por entender o juiz que o procedimento escolhido não era correto. [15] Ocorre que se tratava de Petição Inicial tecnicamente formulada. Tanto que foram distribuídas, e despachadas para efetivação da citação, sem que ocorresse o indeferimento da inicial, inúmeras ações similares em outras subseções federais. Inobstante, o juiz federal extinguiu prematuramente o feito, sem abrir qualquer espaço para apresentação de nossa argumentação jurídica. Entendeu o magistrado ser incorreto o rito e indeferiu de plano a ação, sem qualquer fundamentação e direito de manifestação da autora.[16]
Ora, se irregularidade fosse, tratava-se de questão sanável.
Distribuída a petição inicial, deverá o juiz proferir o despacho preliminar[17] (MOREIRA, 2007, p. 23) e, no caso, o legislador estabelece o direito de participação efetiva do autor na construção da decisão, sanando eventual irregularidade. É o que preleciona o art. 284 do Código de Processo Civil.[18] Para proferir um despacho preliminar negativo[19], indeferindo a inicial,deverá o órgão julgador intimar o autor, para que emende ou complete a inicial.
Com isso, haverá a formação cooperada da decisão, com a participação efetiva dos sujeitos atingidos, no caso da escolha de procedimento: autor e juiz, respeitando a garantia constitucional do contraditório.
4.2. A formação do processo e a reforma já perpetrada
Além do reforço único dos juízes e o decorrente esfacelamento da participação dos sujeitos do processo; com o passar dos anos, o modelo reformista brasileiro foi sendo acometido de uma patologia ainda mais grave, qual seja, o esvaziamento do papel do processo como instituto que garante a implementação de direitos fundamentais. (NUNES, 2010, p.150)
O discurso burocratizante do processo foi fazendo com que todos acreditassem que ele seria um mal, uma doença, a significar que deveria ser extirpada mediante sua supressão quase completa, diminuindo-se o espaço cognitivo formador das decisões e promovendo a defesa da rapidez procedimental a qualquer preço (NUNES, 2010, p. 150).
4.2.1. O julgamento liminar do mérito devido à prescrição
A Lei 11.280/06, com a modificação do instituto da prescrição de ofício, artigo 219, §5º do CPC, deixou ao lado o direito material do autor de receber o crédito e do réu em pagar dívida. Não atentou o legislador para fato de dar ampla liberdade ao juiz para adentrar ao campo de direitos patrimoniais e, além disso, de decidir prematuramente sobre um direito material disponível. Ha uma desconsideração do direito estatuído no artigo 191 do Código Civil, que permite a renúncia da prescrição consumada, a significar que o juiz, antes de julgar o mérito devido a prescrição, deverá citar o Réu (CÂMARA, 2010).[20]
Com efeito, a bem da prevalência do direito dos sujeitos atingidos participarem na construção dos provimentos, a busca da celeridade não pode motivar a perda de disponibilidade e concretização de um direito material. Deverá ser respeitada a garantia constitucional de acesso a justiça, sendo que este não se sintetiza no simples e trivial acesso ao juiz ou ao tribunal, compreendendo a possibilidade de acessar e dar efetividade a uma extensa dimensão de direitos individuais e sociais (TAVARES, 2008, p. 14).[21]
Ocorre um déficit democrático, com a violação do devido acesso à justiça. A prescrição é exceção de direito material, ostentado fundamento no direito privado, sendo portanto questionável[22] e incompatível à interpretação por parte do Estado diante dos efeitos e reflexos no campo processual. (TAVARES, 2008, p. 23)
Entendemos por inconstitucional a inovação trazida pela Lei 11.280/06, no pertinente à alteração do §5º do artigo 219 do CPC. E as alterações legislativas recentes seguem a mesma linha de inconstitucionalidade.
Valkiria Silva Santos Martins
Advogada da União, integrante do Grupo Permanente de Combate à Corrupção.