Não é novidade que o legislador não consegue, ao positivar o Direito, prever todas as situações fáticas que, em tese, deveriam ser reguladas pela norma. Daí a freqüente constatação da existência de lacunas na lei. Também é sabido que essas lacunas existem apenas na lei, não no ordenamento jurídico, de sorte que cabe ao intérprete integrar a norma, valendo-se da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito (art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Neste mês, estaremos chamando a atenção para uma dessas lacunas normativas, existente no Capítulo VI (art. 603 a 611) do Título I do Livro II do Código de Processo Civil. Referido capítulo trata da liquidação de sentença e determina, já no art. 603, que a liquidação terá lugar quando a sentença não determinar o valor ou não individuar o objeto da condenação.
O art. 604, por sua vez, reza o seguinte:
“Quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo aritmético, o credor procederá à sua execução na forma do art. 652 e seguintes, instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo.”
Com essa redação, determinada pela Lei 8.898/1994, deixou de existir a figura da liquidação por cálculo do contador, com o visível propósito legislativo de homenagear a celeridade processual, suprimindo uma fase que, além da demora e dos custos, ensejava sentença, apelação e eventuais recursos extraordinário e/ou especial.
Ocorre, porém, que o legislador não atentou para o fato de que, com a nova redação, o art. 604 deixou de contemplar um ilustre destinatário, qual seja a Fazenda Pública. Isso porque o dispositivo em comento, conforme destacamos na sua transcrição, remete ao art. 652 e seguintes do CPC, os quais referem-se à citação do executado e à nomeação de bens no processo de execução por quantia certa contra devedor solvente. Tais dispositivos são inaplicáveis à Fazenda Pública, a qual é citada nos termos do art. 730 da Lei Instrumental Civil.
Dessa realidade, chega-se à uma inexorável conclusão: o art. 604 do Código de Processo Civil não se aplica contra a Fazenda Pública. Essa posição já foi defendida por Luiz Rodrigues Wambier, em tese monográfica sobre liquidação de sentença:
“Nas execuções contra a Fazenda Pública não se aplica o disposto no art. 604 (oferecimento de memória de cálculo pelo credor, para fins de instruir a execução), pois esse dispositivo faz remissão à forma de execução prevista no art. 652 do CPC, que não se aplica às execuções especiais.
O procedimento aplicável para a execução contra a Fazenda Pública é o que está previsto no art. 730 do Código de Processo Civil, em que o devedor não é citado para pagar em 24 horas (como nos casos do art. 652), mas para opor embargos, se quiser, no prazo de 10 dias. Além disso, os cálculos das obrigações da Fazenda Pública são freqüentemente compostos de diferentes indicadores econômicos, razão pela qual também não se recomenda a adoção do sistema previsto no art. 604, devendo essa hipótese ficar reservada apenas para os casos, que são excepcionais, em que o credor tenha condições de apresentar a memória de cálculo” (Liquidação de Sentença, RT, São Paulo, 1.997, p. 295/296).
No mesmo sentido também se manifestou o E. Superior Tribunal de Justiça, em decisão da Primeira Turma prolatada no julgamento do REsp nº 165.239/MG, Relator o Ministro Demócrito Reinaldo, em acórdão assim ementado (D.J. de 30/08/1999):
“PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. APURAÇÃO DO QUANTUM DEBEATUR ATRAVÉS DE MEROS CÁLCULOS ARITMÉTICOS. INAPLICABILIDADE DO ART. 604 DO CPC.
1. A execução contra a Fazenda Pública encontra-se regulamentada em rito específico, previsto nos arts. 730 a 731 da Lei Processual vigente.
2. O art. 604 do CPC reporta-se ao procedimento de execução por quantia certa contra devedor solvente, onde há citação do executado para fins de saldar o débito em 24:00 h, ou nomear bens à penhora; tal rito se afigura incompatível com a ação de execução intentada contra a Fazenda.
3. Os dados contidos em memória de cálculo, elaborados pelo próprio contribuinte, desservem para comprovar o real valor do débito, tornando-se necessária a dilação probatória prevista na modalidade de liquidação por artigos (arts. 608 a 609 do CPC).
4. Recurso especial conhecido e provido. Decisão unânime.” Todavia, com a constatação da inaplicabilidade do art. 604 quando a executada é a Fazenda Pública, surge o problema: como se procede à liquidação da sentença, já que não mais está prevista a liquidação por cálculo do contador? Se não cabe ao credor apresentar, com a inicial de execução, a sua memória de cálculos, nem, tampouco, promover a liquidação por artigos (que tem por pressuposto a necessidade de alegar e provar fato novo) ou por arbitramento, únicas modalidades expressamente contempladas no CPC, que alternativa lhe resta?
Entendemos que o caso é de requerer-se ao juiz que, com base na instrumentalidade do processo, remeta os autos ao contador judicial para a apuração do quantum debeatur, nos moldes em que se processava a antiga liquidação por cálculo do contador.
O fundamento do pedido será o genérico art. 603, caput, do CPC, ressaltando-se, ad cautelam, a comentada inaplicabilidade do art. 604. Lembramos que a adoção do procedimento aqui proposto é recomendável não só pelo compromisso com a boa técnica processual, como também para evitar-se o já corriqueiro deslocamento da liquidação para o bojo dos embargos à execução, prática que desvirtua este último instituto.
Além disso, cabe considerar que as finalidades da supressão da fase de liquidação prevista no antigo art. 604, quais sejam a celeridade e a economicidade, não são atingidas quando se perpetuam as discussões sobre cálculos, sistematicamente, sempre que é executada a Fazenda Pública. Em outras palavras, a se discutir valores, muito mais rápido e producente que se o faça em sede de liquidação. De outra banda, a celeridade processual, em tempos de economia estável, representa lucro, inclusive, para o devedor, que vê contra si pararem de correr, mais cedo, os juros moratórios e/ou compensatórios.
Parece-nos, portanto, de todo conveniente que, adotando-se o procedimento acima sugerido, inspirado na redação anterior do art. 604 do CPC e respaldado juridicamente nos princípios da instrumentalidade do processo e da economia processual, passe-se a proceder a liquidação por cálculo do contador antes de ordenar-se a citação da Fazenda Pública.
Nos termos aqui defendidos, essa prática implicará num uso (processual) sobre o qual repousa uma convicção jurídica, caracterizando o costume praeter legem integrador da lei.
Brasília (DF), outubro de 2.000.
Autor:
Milton Toledo Junior – Advogado da União