O regime obrigatório de retenção dos recursos extraordinários Importante modificação introduzida pela Lei nº 9.756/98 no processamento dos recursos extraordinário e especial foi a criação do que se pode denominar recurso extraordinário retido e recurso especial retido, quando eles forem interpostos contra decisão interlocutória em processo de conhecimento, cautelar ou embargos à execução.
Dispõe o § 3º do art. 542 do Código de Processo Civil, introduzido pelo dispositivo legal em comento, o seguinte:
“O recurso extraordinário, ou o recurso especial, quando interpostos contra decisão interlocutória em processo de conhecimento, cautelar ou embargos à execução ficará retido nos autos e somente será processado se o reiterar a parte, no prazo para a interposição do recurso contra a decisão final, ou para as contra-razões.”
Trata-se, indubitavelmente, de inovação proposta com intuito de reduzir o número de recursos desnecessários dirigidos às Cortes Superiores, pois, como bem adverte Donaldo Armelin, essa sistemática “elimina a necessidade de julgamento desses recursos se a matéria neles versada deixou de se revelar relevante ou necessária para a parte recorrente ou sua ‘ex adversa’, desinteresse esse objetivamente comprovado pela falta de retenção na ocasião oportuna. Com isso, evita-se que inúmeros julgamentos dos Tribunais Superiores desvendem-se anódinos por versarem matérias já superadas nas instâncias inferiores, aliviando-se a carga nesse particular”(i).
Entretanto, como lembra muito bem o mestre Rodolfo de Camargo Mancuso, resta indagar a respeito da eventual inconstitucionalidade desse texto, uma vez que os requisitos de admissibilidade do RE e do REsp estão na Constituição (arts. 102, III e 105, III, e respectivas alíneas), ficando assim vedado ao legislador ordinário aditar ou suprimir pressupostos de admissibilidade desses recursos. Após analisar as posições de Donaldo Armelin(ii) e de Cássio Scarpinella Bueno(iii) , conclui Mancuso no sentido de que “se a inovação em causa implicasse na criação de óbice recursal propriamente dito, ou agregasse algum quesito de admissibilidade aos já previstos nos textos constitucionais de regência, não se livraria da pecha de inconstitucionalidade – formal e substancial – dado que o legislador ordinário teria, então, invadido seara somente acessível ao constituinte revisor; todavia, cremos que no caso a alteração apenas implica em, de um lado, protrair ou sobrestar o processamento do RE ou Resp contra a decisão final ou ao ensejo das contra-razões.(iv)”
Entendemos que a questão da eventual inconstitucionalidade dessa retenção não pode ser enfocada de forma tão simplista, embora reconheçamos as boas intenções do legislador ordinário quanto ao fim colimado, acima ressaltado por Donaldo Armelin. Imagine-se, por exemplo, uma decisão prolatada em agravo de instrumento, que concede ou rejeita uma liminar de antecipação de tutela. Ora, impedir o julgamento imediato do REsp contra esse acórdão, inclusive com pedido de efeito suspensivo através de cautelar no Superior Tribunal de Justiça, seria o mesmo que recusar a admissibilidade do recurso nessa hipótese. De fato, faleceria interesse processual o recurso retido, para ser apreciado somente ao final da causa, quando não mais seria necessária a liminar para a parte. E se a decisão final da causa encerre questão de fato, inexistindo, pois, questão federal a ser objeto de novo recurso especial contra a decisão final, onde o anterior deveria ser reiterado? Estaria o recurso retido impedido de ser apreciado? Em caso positivo, estaríamos diante de restrição à sua admissibilidade.
Com efeito, parece-nos que impedir que um recurso tempestiva e legitimamente interposto venha a ser processado e julgado imediatamente, sobrestando-o para um momento posterior quando, eventualmente, não mais seja útil ao recorrente, haja vista que a decisão impugnada, não comportando recurso de processamento imediato, poderá resultar em dano irreparável à parte recorrente ou, quando não seja possível a sua reiteração em momento posterior, exigência feita pela Lei nº 9.576/98 para o processamento do recurso retido, seria, sem sombra de dúvida, o mesmo que negar à parte o seu direito ao recurso, diante de uma hipótese constitucionalmente admissível.
Aliás, no passado, já tentou o Superior Tribunal de Justiça inadmitir os recursos especiais contra acórdãos de agravo de instrumento, interpretando a expressão “causas decididas em última ou única instância”, constante do texto constitucional, de forma restritiva, para compreender apenas a decisão final da causa. Essa interpretação restritiva, entretanto, foi afastada diante de um antigo entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o termo “causas” deveria ser interpretado no sentido amplo, enquanto qualquer “questão” que viesse a ser decidida em última ou única instância, como pode vir a ocorrer em julgamentos de agravo de instrumento. Daí porque houve a edição do enunciado da Súmula 86 do Superior Tribunal de Justiça.
É claro que o fim buscado pelo legislador com o regime de retenção, impulsionado pelas próprias Cortes Superiores, é legítimo. De fato, o grande volume de recursos dirigidos aos Tribunais Superiores estão comprometendo não apenas a celeridade dos julgamentos, mas a própria efetividade do processo. Ocorre que, o caminho escolhido parece estar eivado de inconstitucionalidade, caso não sejam solucionadas as duas questões acima propostas, quais sejam, a eventual inutilidade do recurso retido e a eventual impossibilidade de reiteração posterior, quando, por exemplo, não seja cabível o mesmo recurso contra a decisão final.
Relativamente a essa última questão, Teresa Arruda Alvim Wambier propõe uma solução extraída de uma interpretação abrangente do dispositivo em questão, como forma de contornar sua eventual inconstitucionalidade. Sustenta a autora que a reiteração não precisa ser do próprio recurso, mas apenas da intenção de que o recurso seja julgado, como ocorre no agravo retido. Dessa forma, admite-se que a reiteração se faça através de um requerimento em separado, desvinculado de qualquer recurso(v).
Apesar do esforço interpretativo da autora, parece-nos inviável tal solução porquanto no caso do agravo retido, a reiteração se faz nos autos do recurso de apelação, tendo em vista tratarem-se de recursos de competência do mesmo tribunal, ao passo que no caso dos recursos extraordinários não vemos como um mero requerimento, dirigido a qualquer juiz ou tribunal, poderá ter o condão de levar o conhecimento do recurso retido ao tribunal superior.
Parece que o legislador quis efetivamente que o recurso retido somente viesse a ser apreciado caso fosse interposto, em face da decisão final da causa, novo recurso especial ou extraordinário. Nesse sentido, o entendimento do mestre Barbosa Moreira: “Conforme bem se compreende, normalmente o interessado reiterará o pedido no bojo do extraordinário ou do especial que venha a interpor (se cabível) contra a decisão final, ou na resposta a esse recurso. Tal como no agravo retido, não bastará a simples referência ao fato de haver-se recorrido contra a interlocutória: é mister que se manifeste em termos expressos a insistência no julgamento”(vi).
Esse também é o posicionamento de Sálvio Figueiredo Teixeira, afirmando que se deve entender por decisão final, no texto do art. 542, § 3º, do Código de Processo Civil, aquela proferida por colegiados de segundo grau “que tenham posto fim ao processo, apreciando ou não o mérito, ou seja, as decisões não-interlocutórias susceptíveis de serem examinadas em recurso extraordinário ou especial”(vii). ‘
Ao nosso ver, a criatividade exegética dos autores citados, útil sem dúvida alguma para situações práticas incontornáveis, apenas revela o lamentável descuido dos autores da proposta. Força-se uma interpretação ampliativa do dispositivo como forma de se mascarar sua inconstitucionalidade.
Assim, e pondo de lado a diplomacia, tão importante nas relações interpessoais e nas peças argumentativas, embora maléfica ao pensamento técnico-científico, pensamos ser efetivamente inconstitucional o § 3º do art. 542 do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei nº 9.756/98, na forma abrangente e sem temperamentos como foi redigido, sequer permitindo uma interpretação mais restritiva como a querida por alguns autores. Por essa razão e por esse motivo (inconstitucionalidade) deve ser afastada sua aplicação pelos tribunais, mormente quando essa inconstitucionalidade vier a causar potencial dano irreparável à parte(viii).
i)Apontamentos sobre as alterações ao Código de Processo Civil e a Lei nº 8.038/90, impostas pela Lei nº 9.756/98, in Aspectos polêmicos…p.204.
ii)Ob. cit. p. 204.
iii)Uma primeira reflexão sobre o novo § 3º do art. 542 do CPC, in Aspectos polêmicos da Medida Provisória nº 1984, p. 174.
iv)Recurso Extraordinário e Recurso Especial, p. 232.
v)Anotações a respeito da Lei nº 9.576, de 17 de dezembro de 1998, in Aspectos polêmicos…, p. 582.
vi)Comentários ao CPC, p. 589.
vii)A Lei 9.576/98…cit., p. 545.
viii)Assim já decidiu o STJ, em medida cautelar objetivando afastar o regime de retenção imposto pelo tribunal a quo (MC 1659-PR, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 13.04.1999, DJU 24.05.1999, p. 159).