Exercício do direito de petição ou do direito de ação [01], a reclamação é uma demanda típica: somente pode ser utilizada em hipóteses previamente determinadas pelo legislador. E duas são as hipóteses: reclamação para a preservação da competência de órgão jurisdicional e reclamação para garantir a autoridade de decisão judicial [02]. No presente estudo nos deteremos apenas à primeira hipótese.
Muito se discutiu na doutrina e na jurisprudência se há a possibilidade de se manejar o instituto da reclamação (art. 102, l, e art. 105, f, da CR/88) no âmbito dos tribunais de justiça e dos tribunais regionais federais. Na seara jurisprudencial, tal discussão chegou, especificamente no tocante à possibilidade de apresentar a medida constitucional perante os TJ’s, ao crivo do Supremo Tribunal Federal, o qual, conforme a seguir será esmiuçado, entendeu pela possibilidade do seu uso ante a sua natureza constitucional-processual (direito de petição, art. 5º, XXXIV, a, da CR/88). A discussão cinge-se, basicamente, ao fato de que inexiste norma constitucional ou legal incluindo o instituto da reclamação no âmbito das competências dos Tribunais Regionais Federais, não sendo lícito (para aqueles que não a admitem) alargar o espectro normativo dos regimentos internos do TRF’s.
Por honestidade, é bom que se diga que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região encampa o posicionamento contrário ao aqui preconizado. Conforme restou assentado no julgamento do AGRRCL 0068891-59.2010.4.01.0000/MG [03], entendeu a Segunda Seção daquela Corte que uma vez que inexiste norma constitucional ou legal incluindo o instituto da reclamação no âmbito das competências dos Tribunais Regionais Federais, não se apresenta juridicamente possível a interpretação extensiva dos regimentos internos daquelas cortes superiores, de forma a incluir, no âmbito das competências dos tribunais regionais federais, instituto que não tenha, quanto a estes colegiados, previsão constitucional ou legal.
Contudo, tenho por equivocado esse entendimento, forte nas convicções exaradas pelos tribunais superiores. É cediço, conforme exposto alhures, que o próprio Supremo Tribunal Federal firmou posicionamento sobre a possibilidade de manejar-se o presente instituto no âmbito dos tribunais de justiça. Consignou a eminente Ministra aposentada Ellen Gracie, por ocasião do julgamento da ADI 2.212-1/CE, que:
“Como ensina Ada Pelegrini Grinover no mencionado artigo, a natureza jurídica da reclamação está mais próxima do direito de petição, constitucionalmente assegurado ao cidadão e à cidadã, do que ao direito de ação ou ao direito de recorrer que tem a parte no bojo de uma relação processual. O objetivo desse instrumento é o de proporcionar à parte ou ao terceiro interessado um meio hábil de, nas palavras de Ada Pelegrini, “postular perante o próprio órgão que proferiu uma decisão o seu exato e integral cumprimento” . Evita-se, por essa via, no caso de ofensa à autoridade de um julgado, decorrente, por exemplo, de uma interpretação que extravase os seus limites, o caminho tortuoso e demorado dos recursos previstos na legislação processual, inegavelmente inconvenientes quando já tem a parte uma decisão definitiva, transitada em julgado. Não vejo porque não se possa, no âmbito estadual, em nome do princípio da simetria, dotar os Tribunais de Justiça desse instrumento, para garantir a autoridade das suas decisões que, não impugnadas pela via recursal, tenham ali mesmo transitado em julgado. Ou então para preservar a sua competência, eventualmente invadida por ato de outro Juízo ou Tribunal local”.
Todavia, em que pese a Corte Regional da Primeira Região ter firmado o posicionamento de que esse julgamento se deu apenas para atestar a constitucionalidade da Reclamação em sede estadual [04], não se pode deixar de consignar o que, argutamente, foi colocado pelo Ministro Herman Benjamin, no julgamento do REsp 863.055/GO. O referido Ministro do STJ, se debruçando especificamente quanto à questão em relação aos tribunais regionais federais, e fazendo um cotejo com a decisão exarada pela Corte Suprema no julgamento supracitado, assim asseverou:
“A competência dos Tribunais de Justiça distingue-se, basicamente, daquela atribuída aos Tribunais Regionais Federais apenas no que respeita ao controle concentrado de constitucionalidade, exercido somente pelos primeiros. Ao admitir amplamente o uso da Reclamação nos Tribunais de Justiça (rechaçando a tese da aplicação apenas nos casos de controle concentrado de constitucionalidade), o STF desmontou os fundamentos que embasavam a rejeição à aplicação da medida nas Cortes locais, o que parece atingir também os Tribunais Regionais Federais. Com efeito, havia dois argumentos contrários ao uso da Reclamação nos Tribunais locais: a) sua estrutura hierarquizada confere instrumentos capazes de assegurar a observância de suas decisões pelos juízes de primeiro grau; e b) a ausência de previsão legal. Ambos óbices, s.m.j., foram refutados pela decisão do STF”.
Nada obstante, não se diga que tal instituto dependeria de autorização legal expressa. Tem-se que ter presente que a medida constitucional em tela deflui dos poderes implícitos dos tribunais, vale dizer, poder de dar efetividade às próprias decisões e o de defender a própria competência. Esse também é o entendimento do STJ, secundado pelo Ministro aposentado do STF, Sepúlveda Pertence. Foi assim que restou consignado no voto do Relator do REsp 863.055/GO:
“De toda sorte, aqui se apresenta a questão da necessidade da existência de previsão legal expressa a autorizar o uso do instituto no âmbito desses Tribunais. Nesse ponto, e diante da premissa de que o objetivo da Reclamação é conferir efetividade às decisões judiciais, filio-me à corrente dos que, como o Ministro Sepúlveda Pertence, entendem que “outra manifestação de poder implícito dos tribunais é o poder de dar efetividade às próprias decisões e o de defender a própria competência, a partir do qual o Supremo criou, para si mesmo, o instituto da reclamação” (voto proferido na ADI já mencionada). Como manifestação do poder implícito dos Tribunais, entendo que o instituto da Reclamação não precisa estar previsto em lei, já que, com o intuito de preservar a autoridade de suas decisões judiciais, cabe ao juiz fazer uso de todos os meios disponíveis, desde que não proibidos, incompatíveis com os princípios reitores do Estado de Direito Democrático e do direito processual moderno, ou ofensivos à dignidade da justiça”.
O julgado restou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. ACÓRDÃO DE TRIBUNAL NA ESFERA RECURSAL. RECLAMAÇÃO POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL POR AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. INVIABILIDADE. 1. A Constituição Federal de 1988 deu estatura constitucional à Reclamação, prevendo-a, expressamente, entre as competências do STF e do STJ (arts. 102, I, “l”, e 105, I, “f”). A matéria está hoje disciplinada pela Lei 8.038/1990, como instrumento processual próprio dos Tribunais Superiores. 2. O princípio da efetividade das decisões judiciais autoriza a utilização da Reclamação no âmbito dos Tribunais Estaduais e Regionais Federais para garantir a autoridade de suas decisões ou preservar sua competência diante de atos de juízes a eles vinculados. 3. A Reclamação dispensa previsão expressa em lei, por se inserir na esfera dos poderes implícitos dos Tribunais, que devem zelar pela preservação da autoridade de suas decisões, sob pena de desmoralização e ruína do ordenamento.
(…) 11. Recurso Especial não provido. (RESP 200601424418, HERMAN BENJAMIN, STJ – PRIMEIRA SEÇÃO, DJE DATA:18/09/2009 RDTAPET VOL.:00024 PG:00165.)
Nessa ordem de fatores, a existência, pelo menos em sede constitucional, de poderes/competências implícitos(as) a órgãos do Poder Judiciário já foi admitida pela nossa Corte Suprema. Conforme leciona Gilmar Mendes [05] “Há muito a jurisprudência do Supremo Tribunal admite a possibilidade de extensão ou ampliação de sua competência expressa quando esta resulte implícita no próprio sistema constitucional. Nesse sentido, o precedente de relatoria do eminente e saudoso Ministro Luiz Galotti, nos autos da Denúncia n. 103, julgada em 5-9-1951”. Foi isso, inclusive, que se extraiu no afamado julgamento da Rcl. 2.138/DF, na qual se discutia a competência do STF para processar e julgar, nas infrações penais comunas e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado. Afirmou o então Ministro Nelson Jobim:
“A interpretação extensiva do texto constitucional, também em matéria de competência, tem sido uma constante na jurisprudência do STJ e do judiciário nacional em geral. (…) Recentemente, o STF reconheceu a sua competência para processar todo mandado de segurança, qualquer que fosse a autoridade coatora, impetrado por quem teve a sua extradição deferida pelo Tribunal (Rcl. 2.069,Velloso, sessão de 27-6-2003)”.
Nesse mesmo sentido é o que preconiza J.J. Gomes Canotilho [06]:
“É admissível, porém, uma complementação de competências constitucionais através do manejo de instrumentos metódicos de interpretação (sobretudo de interpretação sitemática ou teleológica). Por esta via, chegar-se-á a duas hipóteses de competência complementares implícitas: (1) competências implícitas complementares, enquadráveis no programa normativo-constitucional de uma competência explícita e justificáveis porque não se trata tanto de alargar competências mas de aprofundar competência (…); (2) competências complementares, necessárias para preencher lacunas constitucionais patentes através da leitura sistemática e analógica de preceitos constitucionais”.
Portanto, a legitimidade da adoção de competências implícitas pelo Poder Judiciário, desde que não se desvie para uma atuação arbitrária, é plenamente viável dentro do contexto normativo-constitucional vigente, sobretudo se levarmos em conta que no caso em análise se estará usurpando competência de corte regional sem que, para isso, haja algum mecanismo célere e eficaz para salvaguardar o direito legítimo pretendido. Por tal razão é que Gilmar Mendes [07] concluiu que:
“O sistema constitucional não repudia a ideia de competências implícitas complementares, desde que necessárias para colmatar lacunas constitucionais evidentes. Parece que o argumento da competência estrita do STF não encontra respaldo na práxis jurisprudencial. Afigura-se, pois, incorreta (…) a afirmação (…) segundo a qual a competência da Corte há de ser interpretada de forma restritiva”.
Ademais, há inúmeros exemplos no âmbito do STF onde se adotou a interpretação extensiva ou compreensiva do texto constitucional: mandado de segurança contra ato de Comissão Parlamentar de Inquérito (MS 23.619/DF) e contra atos que tenham relação com o pedido de extradição (Rcl. 2.069/DF); HC contra qualquer decisão do STJ, desde que configurado constrangimento ilegal (HC-QO 78.897/RJ); HC contra a Interpol, em face do recebimento do mandado de prisão expedido por magistrado estrangeiro, tendo em vista a competência do STF para processar e julgar, originariamente, a extradição solicitada por Estado estrangeiro (HC 80.923/SC) [08]. No caso específico dos TRF’s, a própria Corte Suprema, corroborando o que até aqui se defende, alargou a competência das cortes regionais prevista no texto constitucional para que estas possam processar e julgar as ações rescisórias movidas por ente federal contra acórdão de tribunais de justiça ou sentença de juiz de direito e os mandados de segurança impetrados por ente federal contra ato de juiz estadual [09].
Insta frisar, ainda, que o STJ faz uma diferenciação no que toca à possibilidade de cabimento de reclamação nos TRF’s para preservação de suas competências. Por ocasião do julgamento do citado REsp 863.055/GO, o STJ entendeu não ser cabível a Reclamação nos TRF’s e TJ’s para preservação de suas competências, sob o entendimento de que eventuais conflitos deveriam ser solucionados pelos Tribunais Superiores (do art. 102, I, “o”, e do art. 105, I, “d”, ambos da CF). Porém, ressalvou expressamente o caso em que a usurpação de competência se dê por juiz de primeiro grau vinculado ao próprio Tribunal, caso em que perfeitamente cabível a reclamação perante as Cortes Regionais Federais. In verbis:
“…a possibilidade de o Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal decidir, em Reclamação, que um outro Tribunal (ou juiz a ele vinculado) estaria usurpando sua competência ou descumprindo suas decisões, poderia resultar em grave risco de ruptura do equilíbrio das instituições judiciárias. Desse modo, entendo que não cabe Reclamação no âmbito dos Tribunais Estaduais e Regionais Federais para preservação de suas competências (eventuais conflitos devem ser solucionados pelos Tribunais Superiores, nos termos do art. 102, I, “o”, e do art. 105, I, “d”, ambos da CF). Constituem exceções apenas os casos em que a usurpação de competência se dê por juiz de primeiro grau vinculado ao próprio Tribunal , em causas de competência originária do colegiado (…)”;
Conclui-se, então, de uma fusão de ambos os entendimentos dos tribunais superiores, que é constitucional a admissão da reclamação contra ato de juiz federal vinculado ao próprio TRF quando usurpe a competência deste, uma vez que o STF adota a teoria da competência constitucional implícita e o Superior Tribunal de Justiça, ainda que não de forma uníssona, entende que é cabível no âmbito dos tribunais regionais federais a reclamação, desde que a violação à competência das cortes regionais tenha se dado por decisão de juiz vinculado ao próprio tribunal que irá apreciar o remédio processual. Sendo assim, imperiosa a aplicação, por analogia, dos arts. 13 a 18 da Lei 8.038/90 a todos os tribunais regionais federais, sob pena de não existir um remédio adequado para eventual usurpação de competência (vício insanável) por um dado juiz federal em relação ao TRF do qual vinculado, o que, em última análise, atentaria contra a própria inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, CR/88).
Autor:
Francisco Valle Brum
Advogado da União lotado na Procuradoria-Regional da União na 1ª Região. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul e Especialista em Direito do Estado pela UNIDERP