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O ano de 2023 chegou portando a esperança de resgate dos valores democráticos no Brasil. Veio após anos de intensa polarização política, em que as instituições democráticas nacionais foram postas à prova inúmeras vezes e resistiram. Já em seu primeiro dia, um novo governo tomou posse, pela vontade do povo, tão bem representado na cerimônia de entrega da faixa presidencial e na composição ministerial, que ganhou em diversidade, se comparada à anterior.

Na Advocacia-Geral da União, essa mudança de ares se refletiu, principalmente, na notícia de criação de uma Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia. Inserida na estrutura da Procuradoria-Geral da União, a PNDD, quando efetivamente instalada, reunirá, entre outras, as incumbências de zelar pela preservação da legitimação dos Poderes e de seus membros para o exercício de suas funções constitucionais; combater a desinformação sobre políticas públicas; planejar, coordenar e supervisionar a atuação da PGU em defesa de agentes públicos e representar a União em matéria eleitoral, além de adotar medidas judiciais em defesa das prerrogativas dos membros da AGU.

Como é praxe ocorrer com toda novidade do tipo, a notícia de criação da Procuradoria veio acompanhada de certa controvérsia. Dúvidas pairavam sobre sua pertinência, uma vez que as atribuições descritas já são, atualmente, exercidas por outros departamentos da PGU. Houve até questionamentos acerca da competência da AGU para atuar em tal seara.

Essas dúvidas, contudo, não resistiram ao fatídico 8 de janeiro, quando o País e o mundo assistiram, perplexos, à invasão e depredação das sedes dos três Poderes da República, em Brasília, por uma multidão de apoiadores do presidente anterior, derrotado nas eleições de outubro de 2022. Os arruaceiros tentaram, de forma malfadada, retomar o poder na marra. O resultado é conhecido por todos: um prejuízo incalculável ao patrimônio público e a certeza de que o retorno à normalidade democrática não virá tão facilmente. Exigirá um esforço permanente das instituições republicanas.

A atuação da AGU ante os acontecimentos daquele domingo tem sido digna de aplausos. A instituição assumiu posição de protagonismo, adotando, entre outras iniciativas, medidas constritivas em face dos participantes e patrocinadores dos atos golpistas, a fim de assegurar sua responsabilização e o ressarcimento pelos danos que causaram.

No entanto, o resgate de valores democráticos e republicanos também exige uma conformidade na cultura institucional interna. E nesse particular há posturas adotadas na AGU, desde 1º de janeiro, que em nada contribuem para a imagem de garantidora da democracia que a instituição busca consolidar.

A começar pelo Decreto 11.328, de 1º de janeiro de 2023, que trata da estrutura do órgão. Se por um lado teve o mérito de prever a criação da PNDD, o ato, que impactou enormemente a organização da AGU e a atuação de seus membros, além de ignorar a exigência constitucional de lei complementar para dispor sobre a organização e funcionamento da instituição, veio sem praticamente qualquer debate com as representações da carreira. Não houve informação prévia, por exemplo, sobre a retirada, da estrutura da Consultoria-Geral da União, do Departamento de Atos Normativos – que cumpre atribuições consultivas. Ao aninhá-lo no Gabinete do Advogado-Geral da União, o decreto promoveu sério desfalque na estrutura e sistematicidade da Consultoria-Geral, à revelia da Lei Orgânica da AGU.

Mais grave, porém, tem sido o tratamento dispensado a alguns membros da instituição. A primeira semana do ano veio com a exoneração sumária de quase todos os ocupantes de cargos de direção, sem que ao menos, em diversos casos, houvessem ainda sido escolhidos seus sucessores. Dezenas de Advogados da União, da noite para o dia, viram-se fora dos cargos em comissão que ocupavam, sem qualquer conversa, agradecimento pelos serviços prestados, justificativa, ou análise sobre sua qualificação para o desempenho da função.

A gravidade do ato não está no mérito. É esperado que, em meio a uma troca de governo, também ocorram mudanças em cargos diretivos. Mas em um órgão eminentemente técnico como a AGU, essa troca deveria ser criteriosa, levando em consideração se o ocupante do posto é o mais indicado para nele permanecer, ou se há outro mais qualificado. O ideal também seria aguardar a nomeação dos substitutos, possibilitando uma transição e a continuidade do serviço. Do contrário, fere-se o interesse público em favor de outros fatores de natureza questionável. O que há de democrático nisso?

Paralelamente, observa-se o processo de desgaste de Advogados da União, que têm deixado de ser indicados a cargos de relevância – ou, quando indicados, sofrido resistência na Casa Civil –, apenas por, em gestões passadas, no cumprimento do seu múnus público, terem patrocinado atuações que, mesmo nos limites da tecnicidade, desagradaram ou afetaram os novos governantes. De forma irônica, um desses casos envolve exatamente a chefia da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia. Nem Advogados que têm atuado, pela AGU, em face dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro são poupados.

Situações do tipo, claro, não são inéditas. O governo anterior, em seu limiar, também protagonizou uma exoneração massiva, sob o pretexto de “despetizar” a Administração. Cometeu, assim, injustiças e prejudicou o funcionamento da máquina pública. Também há notícia, na AGU, nos últimos quatro anos, de membros que tiveram barradas suas indicações a cargos em comissão pelo mero fato de seguirem ou curtirem postagens de políticos progressistas nas redes sociais.

Mas o precedente seria justificativa para a nova gestão da AGU incorrer nos mesmos equívocos?

O patrulhamento ideológico está longe de constituir uma ferramenta democrática e republicana. Em especial em um órgão de Estado como a Advocacia-Geral da União, onde seus membros, mesmo os ocupantes de cargos em comissão, não desempenham mister político, mas sim a função essencial à Justiça de representar a União judicial e extrajudicialmente e de conferir segurança jurídica à implementação das políticas públicas constantes do plano do governo eleito pelo povo, seja de que matiz ideológica for.

O novo governo foi eleito e tomou posse sob a promessa de resgate dos valores democráticos. Esse discurso, contudo, tem sido contrariado com o alijamento, por razões políticas, de quadros técnicos e qualificados de funções estratégicas na AGU e com a adoção de mudanças estruturais na instituição sem diálogo prévio com as representações das carreiras.

Brasília, 23 de Janeiro de 2023

Clóvis dos Santos Andrade – Presidente da Associação Nacional dos Advogados da União – ANAUNI

Caio Alexandre Wolff – Conselheiro eleito pelos Advogados da União no Conselho Superior da AGU