publicado no Migalhas
Há vários meses vimos observando atentamente algumas manifestações de certa entidade representativa da Magistratura Federal e resolvemos, dado inusitado das declarações, escrever algumas linhas sobre o assunto, tentando responder à seguinte pergunta: Juiz arrecada?
As declarações, veiculadas em várias mídias, têm como objetivo defender reajuste aos membros da magistratura sob o argumento de que os juízes Federais são “superavitários”, digamos assim, ou seja, que a Justiça Federal dá receita para o Estado, e não prejuízo.
Ora, manifestações desse jaez colocam em xeque o que há de mais nobre no Poder Judiciário: a sua independência. Não precisa ser nenhum Bacharel em Direito para se saber que juiz atua de forma imparcial, neutro, não podendo atuar em favor de uma ou outra parte. O juiz exerce uma função estatal, que é a jurisdição, e no desempenho da judicatura deve guardar distância das partes do processo, mesmo em processo de execução. Sem juiz independente não há democracia e Estado Democrático de Direito.
Como então conciliar o fato de que o Juiz “arrecada”, como declaram alguns, com a ideia de Separação e Independência dos Poderes? Sabe-se que mesmo o Executivo se submete às leis do país e à Constituição, cabendo ao Poder Judiciário, em muitos casos, exatamente atuar para coibir abusos e excessos do Poder Público, inclusive em matéria de tributação. Se há a arrecadação, esta se dá por ação da máquina fiscal do Estado, que, em determinados casos, quando há inércia ou recusa do contribuinte em pagar o tributo devido, recorre ao Judiciário para cobrar o quantum debeatur, de modo que o Judiciário atua aí enquanto função jurisdicional, e não como função arrecadadora.
Por outro lado, há de se convir que o texto constitucional separou muito bem tais funções. A função executiva, e mesmo a especificamente arrecadadora ou fiscal, se encontram em tópico distinto da função jurisdicional. O Poder Judiciário se encontra no Capítulo III do Título IV do texto constitucional, cujos princípios de atuação estão definidos no artigo 93 da Carta Magna (clique aqui). O artigo 95, por exemplo, define as garantias da magistratura, erigidas exatamente com o objetivo de dar o máximo de independência aos juízes, de modo a que possam desvencilhar-se de seus afazeres judicantes com respeito tão somente às leis e às suas consciências.
Já o artigo 37, inciso XVIII, trata da “Administração Fazendária”, estabelecendo para esse setor do Poder Executivo precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da Lei. Parece-nos bem claro que Administração Fazendária envolve, tão somente, a máquina “arrecadadora” do Estado, o Fisco, ou seja, toda a organização existente no âmbito do Poder Executivo voltada para a arrecadação de tributos.
Confundir-se-iam, pois, tais funções, a Fazendária com a do Judiciário? Parece-nos óbvio que não. Juiz não arrecada tributo, porque essa não é a sua função constitucional. Quando atua em ações judiciais de natureza fiscal, atua como garantidor de princípios constitucionais, e de forma independente, imparcial, com o fito de dirimir controvérsia estabelecida entre a Fazenda Pública e o contribuinte, jamais integrando a máquina fiscal do Estado.
Há que se registrar aqui a magnanimidade do exercício da judicatura pelo juiz. Função das mais nobres, o magistrado atua como o fiel da balança nos conflitos de interesse, solucionando esses conflitos e possibilitando a paz social. Trata-se de função das mais honradas que poderia almejar um cidadão, especialmente ao que abraçou como objetivo de vida o labor jurídico, e que se desfigura, certamente, diante da ideia de que é tão somente mais um braço do Estado voltado para a arrecadação de tributos.
Certamente é equivocada essa concepção de alguns membros do Poder Judiciário. Jamais poderia o magistrado atuar como arrecadador de tributos. Juiz não é fiscal tributário. A função jurisdicional, na condição de função política, irmana-se com o ideal de Justiça, e, portanto, guarda em sua natureza o gene da imparcialidade, da independência em relação aos litigantes.
Que dizer, então, dos casos em que o Judiciário condena a Fazenda Pública? Poucos não são os feitos, inclusive de natureza fiscal, em que o Poder Judiciário impõe à Fazenda Pública condenações de grande volume, que em muitos casos resultam no pagamento de precatórios e requisições de pequeno valor que impõem despesas vultosas do Poder Público, de modo que também esses casos deveriam ser objeto de mensuração quando da formulação da ideia de que o Judiciário é órgão arrecadador.
Enfim, Judiciário não arrecada. Arrecadação é função tipicamente executiva, e desde priscas eras. Cabe ao Judiciário, como órgão do Estado que exerce a função jurisdicional, atuar de forma imparcial e independente. Arrecadação é função do Poder Executivo, e não do Judiciário, de modo que entender-se contrariamente a isso é colocar o Judiciário, que exerce função política fundamental para a manutenção do Estado Democrático de Direito, na condição de mero executor de ações do Poder Executivo, o que não é concebível e nem admissível sob o prisma da sua condição de neutralidade.
Marcos Luiz da Silva
Presidente da ANAUNI