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LICITAÇÃO COM RECURSOS ORIUNDOS DE ORGANISMO INTERNACIONAL – ANÁLISE DO §5º DO ARTIGO 42 DA LEI 8.666/93.

RONNY CHARLES LOPES DE TORRES

Advogado da União – Especialista em Ciências Jurídicas – Ex- Coordenador Geral de Direito Administrativo da Consultoria jurídica do Ministério da Previdência Social.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO; 2. CONDIÇÕES PARA APLICAÇÃO DO DISPOSITIVO; 2.1. Origem internacional dos recursos; 2.2. Custeio parcial ou apenas total da contratação? 2.3. Princípios fundamentais da Constituição e da lei 8.666/93; 2.4. Aplicação dos procedimentos específicos como condicionantes à obtenção dos recursos; 3. APLICAÇÃO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 38; 4. DESPACHO MOTIVADO DO ÓRGÃO EXECUTOR DO CONTRATO, RATIFICADO PELA AUTORIDADE IMEDIATAMENTE SUPERIOR; 5. CONCLUSÃO

1. INTRODUÇÃO

O §5º do artigo 42 da Lei 8.666/93 encerra um dos temas mais complexos do estatuto licitatório, pois se ocupa em tratar da mitigação da obrigatoriedade de dispositivos da Lei 8.666/93, nos negócios que envolvem recursos oriundos de entidades internacionais.

O próprio caput do aludido artigo já demonstra a intenção do legislador de não tornar as formalidade e exigências previstas na Lei 8.666/93 como regras inflexíveis impeditivas a tais negócios internacionais, que, obviamente, envolvem aspectos econômicos e financeiros específicos e diferenciados, necessários à concretização da própria disputa e ulterior contratação.

Primeiramente, vale transcrever o § 5º do art. 42, dispositivo a ser analisado:

“Art. 42….In omissis

§ 5º. Para realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior”.

Com relação aos tratados, acordos ou ato internacionais, é bom lembrar que, conforme artigo 49 da Constituição Federal, compete exclusivamente ao Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tais instrumentos, quando acarretarem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.

Embora os tratados sejam firmados pelo Presidente da República, enquanto Chefe de Estado, sua validade depende de aprovação pelo Congresso Nacional, por Decreto Legislativo. Conforme ensina Gabriel Dezen Júnior, tais tratados detém nível hierárquico de lei ordinária e admitem controle de constitucionalidade. (Curso completo de Direito Constitucional, Volume I, Ed. Vestcon, 8ª Edição). Assim, quando estipulam novo regramento para a realização do procedimento de seleção a ser custeado com o dinheiro estrangeiro oriundo do respectivo pacto internacional, o acordo ou tratado atua como se lei fosse, aplicada às situações por ele envolvidas. De qualquer forma, conforme se verá adiante, tais regramentos possuem limites de aplicação pela própria natureza do ordenamento jurídico brasileiro, sendo inadmissíveis, por exemplo, procedimentos que infrinjam preceitos constitucionais.

2. CONDIÇÕES PARA APLICAÇÃO DO DISPOSITIVO

2.1. ORIGEM INTERNACIONAL DOS RECURSOS

Inicialmente, devemos atentar que o dispositivo se restringe às situações em que há captação de recursos internacionais, seja por doação ou financiamento, não sendo cabível sua utilização nas hipóteses em que o custeio seja realizado exclusivamente com recursos nacionais. Neste sentido ensina o célebre Marçal J. Filho:

“… não se configura  o pressuposto de aplicação ao dispositivo quando os recursos aplicados são de origem nacional. Assim, suponha-se que o governo brasileiro colabore  com recursos para uma instituição internacional qualquer, inclusive com a previsão de que  tal redundará na sua aplicação no território nacional. Não será admissível reputar como presente, em tal hipótese, o pressuposto da aplicação do art. 42, § 5º.” (Comentários … Ob. Cit. Pág. 411)

O próprio Tribunal de Contas da União já firmou entendimento que restringe a utilização do dispositivo, declarando expressamente que a faculdade prevista no art. 42, § 5º, da Lei nº 8.666/1993 não se aplica às despesas realizadas com recursos nacionais, mesmo em sede de acordo ou projeto de cooperação, e ainda que aqueles sejam previamente repassados a agências oficiais estrangeiras ou organismos financeiros multilaterais. Neste sentido, vide Decisão 178/2001-Plenário e Acórdão 601/2003, ambos do TCU.

Possui razão o TCU, a adequada compreensão do dispositivo demonstra que a amenização das regras licitatórias previstas por ele deve ocorrer apenas em situações especiais, que envolvam captação de recursos advindos do exterior, através de financiamento ou doação, e que atendam às exigências legais. Tal permissiva legislativa apresenta-se correta porque não seria plausível permitir que exigências inflexíveis impedissem a Administração de auferir benefício financeiro advindo do exterior para a fomentação de projetos em benefício do país.

Outrossim, deve-se frisar que, via de regra, os organismos estrangeiros apresentam procedimentos que valorizam a disputa e concorrência, por vezes de forma assemelhada ao previsto em nosso ordenamento, pois têm interesse indireto na lisura do certame e na consecução de uma boa contratação. Ademais, existem limites para o abrandamento do procedimento licitatório previsto pelo estatuto, conforme se verifica da própria leitura do dispositivo, e será abaixo explicado.

2.2. CUSTEIO PARCIAL OU APENAS TOTAL DA CONTRATAÇÃO?

Devemos então enfrentar uma primeira questão, relativa à incidência do dispositivo legal supracitado, que mitiga ou sublima o regime jurídico seletivo previsto no estatuto licitatório. Seria possível a utilização da permissiva do § 5º do artigo 42 em contratações apenas parcialmente custeadas pelos recursos internacionais?

Na verdade, não há vedação legal, ou mesmo exigência de que a totalidade dos recursos tenha origem internacional; a Lei apenas aponta a permissiva de mitigação do regramento ordinário previsto na 8.666/93, para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens, com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte. Não há qualquer alusão à condição de que esses recursos devem ou não corresponder à integralidade da ulterior contratação.

Noutro diapasão, conforme visto anteriormente, tem-se entendido que não cabe a utilização da permissiva do § 5º do artigo 42, quando todos os recursos forem originariamente nacionais.

Diante dessas duas premissas, cabe indagar, seria ou não possível a utilização da regra prevista no § 5º do artigo 42 quando os recursos internacionais envolvidos custearem parte, e não a totalidade da contratação?

O Legislador foi sábio ao não estabelecer esse limite, pois ele poderia ir de encontro ao próprio fundamento de existência do dispositivo. A leitura atenta nos demonstra que a amenização das regras licitatórias ocorre em função de situações especiais, em que há captação de recursos advindos do exterior, através de financiamento ou doação internacional, presumindo a vantagem que tais negócios trazem consigo.

Esse aspecto de primazia ou “vantajosidade” do acordo em si é feito pelas instituições republicanas competentes, que aprovam o acordo internacional e devem, naquele momento, aferir a viabilidade dos objetivos firmados, bem como, no caso de empréstimos, a vantagem das taxas e percentuais envolvidos.

Presumindo que o acordo é vantajoso para o país, e sendo a respectiva liberação de recursos condicionada a uma realização de procedimento licitatório de acordo com as regras seletivas do organismo internacional, desde que as mesmas não conflitem com o princípio do julgamento objetivo (exigência do próprio § 5º do artigo 42), nem conspurquem os princípios constitucionais relativos às contratações públicas (exigência do próprio ordenamento jurídico), não seria plausível permitir que exigências inflexíveis impedissem a Administração de auferir benefício financeiro advindo do exterior para a fomentação de projetos em benefício da nação.

O problema já foi tratado de forma direta e clara pelo conselheiro do Tribunal de Contas de São Paulo, Antonio Roque Citadini:[1]

“ …temos os casos tratados no § 5º deste artigo, que diz respeito à contratação de obras, serviços ou bens com recursos provenientes de órgãos internacionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e Banco Mundial, dos quais o Brasil faça parte. A licitação deverá obedecer às normas de contratação do órgão financiador, desde que não conflitem com disposições constitucionais de contratação, e especialmente o princípio de contratação mais vantajosa.”

“Duas justificativas existem para esta aceitação de norma estrangeira na licitação: a primeira é que o próprio Brasil, sendo participante do órgão internacional (ainda que minoritário), referende as normas da instituição; e a segunda, de natureza prática, é que, caso o administrador brasileiro não as aceite, o órgão não liberará os recursos, logo não havendo, assim, contratação”.

Apresentam-se então dois grandes problemas no entendimento de que o regramento do § 5º do artigo 42 apenas tem cabimento quando houver totalidade dos recursos internacionais no custeio da contratação. Em primeiro, esse entender criaria uma situação esdrúxula, na qual seria permitido o regime diferenciado (possibilitando o negócio jurídico) na contratação totalmente financiada por empréstimo internacional (cuja captação pressupõe pagamento de juros); contudo, essa mesma concepção não permitiria a contratação sob o regime especial em contratos que seriam quase que em sua totalidade (digamos, 95%) custeados por doação oriunda de organismo internacional, inviabilizando o recebimento da doação. Obviamente, mais que naquele, nesta última opção negocial (doação), mesmo não se alcançando a totalidade do custeio, parece haver uma situação mais vantajosa aos cofres públicos nacionais e ao interesse público.

Noutro prisma, tal pensamento radical ignora o fato de que tais organismos têm por premissa exigir contrapartida ou complementação financeira, repassando apenas um percentual dos recursos necessários à contratação; frações que usualmente são estabelecidas no próprio acordo realizado.

Outrossim, deve-se ainda reiterar que, via de regra, os organismos estrangeiros apresentam procedimentos seletivos que, por vezes, assemelham-se aos previstos na Lei 8.666/93.

Pois bem, entendemos que deve então ser feita uma interpretação razoável da questão, permitindo que o regime previsto neste dispositivo seja utilizado mesmo em situações nas quais a contratação não venha a ser custeada totalmente com os recursos externos. O fundamental, o pressuposto utilizado pelo legislador para a disposição prevista no § 5º do artigo 42, não foi a mera existência de recursos internacionais, mas o benefício que a captação de tais recursos poderia trazer ao país, sendo irrazoável que tais benefícios, quando condicionados a critérios de seleção apresentados por esse organismos, fossem perdidos por não atender rigorosamente aos trâmites das modalidades licitatórias da Lei 8.666/93.

O cerne da questão impõe que a discussão seja focada no fundamento da permissiva, que é o fato de que a captação de tais recursos, sendo benéfica ao Estado brasileiro e condicionada à exigência de utilização dos procedimentos de seleção do ente internacional, permite a mitigação do regramento ordinário da Lei 8.666/93.

Pensamos então que por ausência de vedação expressa no § 5º do artigo 42, a existência de contrapartida financeira por parte da União, ou seja, existência proporcionalmente reduzida de aporte financeiro pela Administração, não impede a utilização da mitigação prevista pelo dispositivo.

Noutro prumo, acreditamos que, tendo em vista o objetivo básico do legislador de busca de vantagem para a Administração (art. 3º da Lei 8.666/93), os recursos advindos do exterior devem caracterizar induvidoso beneficiamento para a pessoa jurídica de direito público (ou privado) interno, de forma a justificar e tornar necessária ou vantajosa a utilização do regime diferenciado previsto na regra internacional.

Não se trata de uma verificação genérica dos termos do acordo, pois falece competência ao órgão administrativo para reapreciar esse mérito, já avaliado pelo Poder Executivo e Congresso Nacional (vide artigo 49, I, da CF). Essa aferição circunscrever-se-á ao caso concreto do contrato, já que, em tese, a contratação necessária ao cumprimento do objetivo do Acordo Internacional também poderá ser feita totalmente através de recursos próprios nacionais, respeitando o regramento licitatório brasileiro.

Deve-se levar em conta, por exemplo, que os empréstimos significam despesas de quitação postergada, portanto não podem justificar despautérios fiscais em razão de contratações que poderiam ser realizadas com recursos próprios sem qualquer dificuldade. Noutro diapasão, no caso das doações através de recursos internacionais, em tese o benefício parece ser de verificação mais evidente, o que poderia justificar mais facilmente a aplicação do § 5º do artigo 42.

2.3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA CONSTITUIÇÃO E DA LEI 8.666/93

Superada a questão relativa à origem externa apenas da maioria dos recursos, no que tange à possibilidade de incidência do regramento do § 5º do artigo 42, já está assente o entendimento de viabilidade de utilização do procedimento seletivo do ente estrangeiro, desde que respeitados o regramento constitucional pátrio e os princípios jurídicos atinentes à Administração Pública e relativos ao procedimento licitatório, dentre eles o do julgamento objetivo, citado no próprio dispositivo.

Não é outro o entendimento do Tribunal de Contas da União acerca da possibilidade de utilização do “procedimento licitatório” estipulado pelos órgãos estrangeiros financiadores. Senão vejamos:

“De se destacar, ainda, que restou claro quando da prolação da Decisão nº 1.640/2002 – Plenário – TCU, que desde que não haja afronta à Constituição Federal, bem assim à legislação vigente no País, que os normativos de órgãos financiadores internacionais poderiam ser utilizados em nossos procedimentos licitatórios”. (TCU – Acórdão 1.514/2003 – Plenário)

Não obstante tenha admitido a utilização dos normativos de órgãos financiadores internacionais, deve-se advertir, contudo, que nesta mesma decisão o Egrégio Tribunal destacou que tais regramentos não podem conspurcar os princípios fundamentais da Administração Pública, previstos na Constituição Federal e na Lei 8.666/93.

A legalidade encontra-se resguardada nas contratações, mesmo utilizando-se procedimento diferente do previsto no estatuto licitatório, porque assim este o permitiu, admitindo a mitigação, conforme explicado anteriormente. No mesmo sentido, a contratação custeada com recursos internacionais, na forma do dispositivo analisado, não frustra ou impede o necessário atendimento aos princípios da moralidade e impessoalidade, que impedem que procedimento seletivos mais simples sejam utilizados para atendimento de interesses inconfessáveis ou beneficiamento de pessoas próximas aos gestores responsáveis.

No esteio de advertências já identificadas em muitas das manifestações dos órgãos de controle da Administração Federal, sugere-se, por exemplo, que sejam tomadas providências a fim de evitar a contratação de consultores que detenham relação de parentesco com servidores junto aos quais exercerão suas atividades, conforme já determinou a 1ª Câmara do TCU, no recente acórdão de nº 3.559/2006.

Em relação ao atendimento ao princípio da publicidade, parece-nos inegociável a publicação do respectivo edital, nas formas permitidas pela legislação pátria, para que eventuais contratantes possam ter conhecimento do certame, mesmo que ele esteja sendo fomentado por recursos internacionais.

Inclusive, no âmbito federal, deve-se lembrar que a publicidade e ampla divulgação constam como exigências do Decreto 5.151, de 22 de julho de 2004, que estabelece os procedimentos a serem observados pelos órgãos e pelas entidades da Administração Pública Federal direta e indireta, para fins de celebração de atos complementares de cooperação técnica recebida, decorrentes de Acordos Básicos firmados entre o Governo brasileiro e organismos internacionais cooperantes, e da aprovação e gestão de projetos vinculados aos referidos instrumentos:

Por fim, devemos lembrar ainda que a origem estrangeira dos recursos não exime o gestor do atendimento aos princípios da eficiência. Neste prisma, o fato de tratar-se de recursos externos não serve como pálio, desculpa ou justificativa para contratações desastrosas ou desnecessárias, sobretudo nas hipóteses de financiamentos, onde há sim uma oneração dos cofres públicos, embora tal pagamento seja postergado ao momento da quitação do “empréstimo”.

Da mesma forma, reiteramos que além da expressa ressalva da parte final do dispositivo, que coloca o julgamento objetivo como condição inegociável para o procedimento exigido pelo ente financiador ou doador, encontra-se pacificado na jurisprudência e doutrina especializada que tais modificações não podem conspurcar também regras fundamentais da Lei 8.666/93.

Nesta feita, impõe-se que mesmo sendo aceitável a imposição das regras de seleção das entidades internacionais, faz-se necessária a avaliação da compatibilidade de tais procedimentos com os respectivos princípios constitucionais, julgamento objetivo, e mesmo regras fundamentais do estatuto licitatório pátrio, o que impõe às autoridades competentes o dever de realizar tal aferição, inclusive detendo-se sobre a modalidade seletiva indicada.

2.4. APLICAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS ESPECÍFICOS COMO CONDICIONANTES À OBTENÇÃO DOS RECURSOS;

O § 5º do artigo 42 do estatuto destaca ainda que a admissão de critérios diferenciados de seleção da melhor proposta (licitação) deve ser exigida pelo ente estrangeiro para a obtenção do financiamento. Ou seja, as mitigações devem ser fruto da exigência do doador ou financiador estrangeiro e condicionantes da concretização da operação financeira.

Não cabe ao gestor, a pretexto de estar manejando contratações com recursos externos, aproveitar-se para, por vontade própria, estipular procedimento que substitua as regras da Lei 8.666/93.

Vale mencionar que em muitos acordos internacionais, algumas situações permitem ao órgão realizador do certame a opção entre as modalidades concebidas pelo ente e alguma prevista em nosso ordenamento, como o pregão. Nesse caso, não havendo a imposição condicionante pelo ente financiador, deve o gestor optar pelo procedimento previsto em nosso ordenamento, pois restaria então descaracterizado um dos elementos previstos na permissiva do §5º do artigo 42, qual seja, a característica de que tais critérios são condicionantes para a obtenção do financiamento ou doação.

Sendo permitido pelo ente internacional a utilização de procedimento previsto em nosso ordenamento jurídico, acreditamos que deve ser esse utilizado, salvo elevadas e justificadas razões de interesse público.

3. APLICAÇÃO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 38;

Adentramos então outra questão de relevante importância, que envolve o entendimento de alguns órgãos federais de que em tais contratações, pela mitigação do regramento da Lei 8.666/93, o mandamento previsto no parágrafo único do artigo 38 da Lei 8.666/93, qual seja o exame e aprovação da minuta contratual e do edital pelo órgão de assessoria jurídica, não seriam de obediência obrigatória.

Sob esse argumento, têm-se admitido que a mitigação da aplicação dos dispositivos da Lei 8.666/93 significaria o afastamento da análise das minutas pelos órgãos oficiais de assessoramento jurídico.

Tal posicionamento não possui o devido respaldo em nosso ordenamento, sobretudo no âmbito federal. Ao revés, a mitigação à aplicação dos dispositivos do estatuto deve ser minuciosamente analisada pelo órgão de assessoramento jurídico (que, no âmbito do Poder Executivo Federal, é realizado pela Advocacia Geral da União), inclusive para verificação dos pressupostos previstos pelo artigo 42 do estatuto, bem como as eventuais incompatibilidades entre as novas regras apresentadas e os limites impostos pelo nosso ordenamento.

Outrossim, no âmbito federal impõe-se que o exame dos editais de licitação, contratos e instrumentos congêneres, pelos advogados da União, deriva da própria Lei Complementar 73, de 10 de fevereiro de 1993.

Esse parece ser o entendimento do TCU, conforme trechos de um de seus acórdãos:

“… Ausência de cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 38 da Lei nº 8.666/93, que determina a submissão a prévio exame e aprovação do Órgão Jurídico das minutas dos instrumentos da licitação (edital, contrato, etc.), considerando que, ainda que obedecendo a modelagem do ……., a configuração final após as necessárias adaptações e ajustes não podem se furtar à exigência da lei pátria que, nesse particular, não gera colidência com os normativos do … Tal ocorrência desatende ao comando do princípio da legalidade e, desdobramento, o da tutela ou controle da administração pública. …. Considero indispensáveis os pareceres jurídicos, para que fiquem esclarecidos todos os pontos exigidos pelos organismos internacionais e suas adequações às normas e princípios legais nacionais, razão pela qual entendo cabível a determinação ao órgão para que garanta o perfeito atendimento ao disposto no art. 38, parágrafo único, da Lei 8.666/93, comprovando a atuação dos órgãos jurídicos competentes…. “ (Acórdão TCU 715/2004 – Plenário)

Total razão assiste ao Tribunal de Contas da União, a necessária análise e verificação da admissibilidade e compatibilidade das normas apresentadas pela entidade internacional com nosso ordenamento exigem a responsável atuação dos órgãos de assessoramento jurídico do ente público.

Mais ainda, o ideal é que a própria formulação dos acordos, assim como ocorre quando da formação dos Projetos de Leis, respeitem a prévia consulta jurídica acerca dos aspectos constitucionais e legais pertinentes, evitando futuras incompatibilidades que impeçam sua adequada execução.

4. DESPACHO MOTIVADO DO ÓRGÃO EXECUTOR DO CONTRATO, RATIFICADO PELA AUTORIDADE IMEDIATAMENTE SUPERIOR

Por fim, vale lembrar a última condição prevista pelo legislador, qual seja, de que os critérios diferenciados relativos ao procedimento da entidade financiadora “sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior”, que deve ser atendida para fins de cumprimento dos requisitos legais para dar-se validade da permissiva prevista no § 5º do artigo 42.

Tal disposição tem o valor de exigir que a autoridade superior do órgão tome conhecimento sobre o modelo de contratação proposta e assuma a responsabilidade pela mesma. Sobretudo nos grandes órgãos, essa atitude impede a omissão das autoridades maiores que, sob o argumento da necessidade de delegação de poderes, impõem a subalternos a responsabilidades por decisões e atos administrativos que encerram grande interesse do erário, pela utilização de recursos públicos para contratações.

5. CONCLUSÃO

Nessas linhas, apresentamos uma análise do §5º do artigo 42 da Lei 8.666/93, dispositivo que, em nosso ver, encerra um assunto pouco discutido na doutrina, mas de grande interesse para o meio jurídico, dado ao grande número de acordos internacionais que envolvem a aplicação de recursos externos e trazem consigo a aplicação de normas de seleção estabelecidas por entidades estranhas à Administração Pública brasileira.

Permitir-se o entendimento de total inaplicação do regime jurídico nacional em tais contratações é inconstitucional e prejudicial aos interesses da nação; por outro lado, temer e apresentar repulsa aos procedimentos apresentados pelas entidades financeiras é um comportamento equivocado que impede o país de concretizar vantajosos acordos internacionais, o que atinge o próprio interesse público que a norma visa proteger.

A melhor saída, conforme explicado anteriormente, é a compreensão adequada do dispositivo, com as amenizações e limites que ele estabelece, permitindo um equilíbrio da norma e o interesse protegido, com o pertinente ordenamento jurídico pátrio.



[1] Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Públicas, São Paulo, Max Limonad, 1999, pp 334.