As notícias veiculadas no último fim de semana sobre a operação Porto Seguro, da Polícia Federal, e que envolvem servidores de vários órgãos federais, incluindo Advocacia-Geral da União e algumas agências reguladoras, pelo menos já deixa exposta uma questão: a nomeação de servidores para cargos em comissão na administração federal tem que ser revista. Especialmente em instituições que deveriam atuar de forma independente e isenta, como é o caso das instituições citadas, o que atinge frontalmente as propostas apresentadas pelo governo no bojo do PLP 205/2012, projeto que altera a Lei orgânica da AGU.
Cumpre, de início, registrar que o aludido projeto foi concebido pela atual cúpula da AGU, tendo como um dos seus principais “coordenadores” exatamente o servidor que vem sendo citado em todas as reportagens veiculadas na imprensa sobre a operação Porto Seguro.
O projeto, dentre várias “teratologias”, propõe: transformar advogados não concursados em membros da instituição; controle hierárquico sobre pareceres jurídicos, passando a considerar “erro grosseiro” o parecer exarado pelo advogado da União que contrarie o entendimento do seu superior; a não previsão de critérios objetivos e meritocráticos para preenchimento dos cargos de chefia da instituição, ficando ao total arbítrio do advogado-geral da União essas indicações.
Comecemos pelo último ponto: a Anauni (Associação Nacional dos Advogados da União) já desde o início da sua existência que defende um modelo de rodízio nas chefias da AGU. Deve haver alternância na ocupação de cargos de chefia da instituição, e a indicação deve guardar critérios objetivos, fundados na legitimidade e no mérito do titular. Durante alguns anos o modelo foi utilizado nas Procuradorias da União. Havia uma consulta aos membros da AGU lotados na unidade, que indicavam uma lista ao advogado-geral da União. O eventual nomeado permanecia no cargo por um prazo fixo, um mandato de quatro anos. Em seguida, seria substituído por outro membro indicado da mesma maneira.
Nesse caso, todos os indicados seriam membros da carreira de advogado da União concursados. Nenhum dos cargos poderia ser ocupado por membros não concursados. O método permitiria que os chefes realizassem suas atividades de forma independente, sem o risco de serem defenestrados do seu cargo em face de uma eventual “discordância” das posições jurídicas dos seus superiores. Além disso, possibilita que os nomeados não guardem qualquer relação com que os nomeia. Os critérios são objetivos, de sorte que amizade, coloração partidária, ou QI (quem indica) seriam critérios banidos desse sistema.
Infelizmente o modelo, ao invés de ser aperfeiçoado, foi aniquilado pela atual direção da AGU. A justificativa é a de que cria “grupos e divisões” internas na instituição. Contudo, nada de novo e melhor foi criado ou sugerido. O que se vê é o retorno ao modelo anterior, onde as nomeações se dão por critérios nada claros ou objetivos, e pelo que se vê das notícias recentes, mesmo em situações em que não seria recomendável a nomeação.
No ano passado, tivemos oportunidade de encaminhar a sugestão de um modelo ao advogado-geral da União, pautado nessas premissas. Os nomes seriam indicados em listas tríplices, formadas internamente no âmbito de cada unidade. A nomeação deveria recair sobre um advogado da União lotado na unidade, evitando-se, pois, que as nomeações sejam também utilizadas para a burla ao concurso de remoção de membros da instituição. Infelizmente, as listas e a proposta formulada pela Anauni não foram consideradas pelo dirigente da AGU. O assunto foi encerrado sem maiores discussões.
Agora, os jornais também anunciam que a presidente Dilma Rousseff que evitar nomeações políticas para agências reguladoras. É preciso que a medida alcance também órgãos como a AGU, Receita Federal e a Polícia Federal, instituições que devem atuar de forma neutra e técnica, evitando-se eventual “partidarização” da atuação desses órgãos federais.
Com efeito, a medida também deve alcançar o PLP 205/2010, projeto que altera a lei orgânica da AGU. A proposta, encaminhada pelo governo federal recentemente, propõe que pessoas não concursadas sejam consideradas membros da AGU, e ainda estabelece uma hierarquia técnica entre os advogados da União e seus chefes, de forma que a não concordância do profissional com o posicionamento da sua chefia pode implicar em “erro grosseiro” e aplicação de penalidades ao membro concursado. Nada pior para o país, pois fomenta o aparelhamento e a corrupção no órgão. A sua retirada do Congresso Nacional é medida que se impõe, até porque a imprensa nacional já vem noticiando a possível ligação desse projeto aos fatos investigados na Operação Porto Seguro.
Por fim, a esdrúxula proposta de criar uma “hierarquia técnica” do advogado da União em relação a sua atividade-fim, ou seja, o profissional, ao elaborar um parecer, não terá a independência técnica necessária para o exercício da sua função, devendo adotar o entendimento do seu chefe, sob pena de ser punido. Ora, nada mais propício a estabelecer um ambiente favorável à corrupção e ao favorecimento indevido dentro da administração pública. Com isso, o advogado da União restará manietado, suprimido em sua independência técnica, o que contrasta, inclusive, com a própria essência da sua atividade.
É preciso rediscutir essas propostas, que já se encontram tramitando no Congresso Nacional. As chefias, e postos de grande relevância da instituição, não podem ficar simplesmente a mercê de quem a comanda. O advogado da União deve atuar de forma independente, sendo fundamental para isso que a ocupação de cargos de direção na instituição o sejam também mediante critérios que permitam tal independência, e não o contrário. A independência técnica tem que ser observada, para garantir a devida impessoalidade e isenção técnica do profissional.
A moralidade precisa ser restaurada e mantida a qualquer custo nessa instituição tão cara ao Estado brasileiro, e que, nos últimos anos, vem dando mostras de que se devidamente aparelhada proporciona ganhos fantásticos ao povo brasileiro, notadamente no combate à corrupção. Não podemos olvidar que nos últimos anos a AGU se notabilizou pela sua atuação na defesa do interesse público e no combate à corrupção, tendo sido, inclusive, vencedora do Prêmio Innovare de 2011 por essa atuação combativa dos seus membros.
Enfim, o PLP 205/2012 deve ser retirado do Congresso Nacional, de forma a que possa ser debatido com tranquilidade e profundidade, proporcionando-se, em seguida, que sejam expurgadas de seu texto todas as propostas que violem o texto constitucional e o interesse público. Sem isso, teremos uma lei orgânica que tornará a AGU cada vez mais passível de sofrer intervenções de natureza “partidária” ou mesmo por parte de interesses econômicos e pessoais nada republicanos. O que espera a Anauni é um projeto de Lei que fortaleça a AGU e seus membros, tornando a instituição ainda mais capacitada a atuação na forma delineada pela Constituição Federal.
Marcos Luiz da Silva é presidente da Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni).
Revista Consultor Jurídico, 26 de novembro de 2012