Inicialmente, é importante entender o significado do instituto aposentadoria para, a partir dele, ser possível compreender as especificidades da aposentadoria compulsória. O renomado autor José dos Santos Carvalho Filho (2012, p 689) conceitua que “aposentadoria é o direito, garantido pela Constituição, ao servidor público, de perceber determinada remuneração na inatividade diante da ocorrência de certos fatos jurídicos previamente estabelecidos”.
A CRFB concentra as disposições acerca da aposentadoria do servidor público no Art. 40 e seus diversos parágrafos. Especialmente no §2º desse mesmo artigo há a previsão constitucional da aposentadoria compulsória. Contudo, deve ser frisado que as disposições sobre a aposentadoria dos servidores não se esgotam nesse artigo, pois, em algumas passagens, a própria CRFB faz remissão ao Art. 40.
Um claro exemplo disso é que, apesar de exercerem funções altamente relevantes para o cenário nacional, os membros do Judiciário, dos Tribunais de Contas e dos diversos Ministérios Públicos seguem as mesmas regras de aposentadoria que regem os servidores estatutários (desde os cargos mais subalternos aos de maior “renome” entre os candidatos de concursos públicos). Apesar de não ser objeto deste trabalho, impende afirmar que as disposições sobre a aposentadoria dos agentes públicos regidos por um contrato de trabalho (conhecidos como empregados públicos), servidores temporários, servidores que ocupem exclusivamente cargos em comissão e trabalhadores da iniciativa privada reger-se-ão pelo disposto nos Arts. 201 e 202 da CRFB e legislação infraconstitucional pertinente.[1]
Percebe-se, portanto, que a aposentadoria do servidor não possui conexão alguma com quaisquer formas de penalidades impostas ao mesmo, por mais vontade que o mesmo possua de continuar laborando. Assim, devemos desde já diferenciar a imposição da aposentadoria compulsória com caráter de sanção da aposentadoria compulsória imposta ao servidor por mandamento constitucional sem nenhum viés punitivo.
A aposentadoria compulsória, muito conhecida como “expulsória”, não é novidade na ordem jurídica nacional, já havendo sua previsão expressa nas Constituições anteriores. A maior parte delas estipulou 70 anos como limite etário. A Constituição de 1934 possuiu o maior limite: 75 anos, de acordo com o Art. 64, “a”. Já a de 1937 reduziu o limite para 68 anos, conforme Art. 156, “d”.
Outra informação relevante é a existência da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 457/2005, de autoria do senador Pedro Simon, propondo a majoração do limite para 75 anos. A argumentação utilizada para a elevação versa sobre o aumento dos gastos previdenciários em decorrência da elevação da expectativa de vida da população; o fato de que a pessoa não se torna automaticamente descartável intelectual e profissionalmente aos 70 anos de idade e a possibilidade de problemas depressivos.
O projeto sofreu diversas emendas, mas todas elas baseiam-se no fato de que a aposentadoria “forçada” aos 70 anos de idade deve ser alterada, tendo em vista a mudança da dinâmica social e da própria fonte de custeio e organização do sistema previdenciário, o que demonstra a magnitude do assunto para toda a sociedade.
A elevação da expectativa de vida e sua respectiva implicância na Previdência Social são pontos nodais das temáticas aposentadorias e pensões. É fato notório e salutar que, ao longo das décadas do século passado e da primeira década deste século, a expectativa de vida do brasileiro aumentou. Talvez a principal justificativa para a aposentadoria compulsória remonta ao fato de existir uma expectativa de que a pessoa ficará incapaz (ou terá maiores dificuldades) para as atividades laborativas quando atingir uma determinada idade.
Tal noção, aparentemente benéfica e com fundamentação rasa, poderia ter algum grau de legitimidade no Brasil de 50 ou 60 anos atrás, quando as condições sociais eram completamente diferentes. Ainda que atualmente coexistam “Brasis” com IDHs de Escandinávia e de países paupérrimos da África, é inegável que houve consideráveis avanços no campo da medicina, saneamento básico, educação e condições sociais em geral.
Logo, em uma análise superficial da sociedade brasileira, o quadro de antigamente é completamente diferente do atual, possibilitando que pessoas mais velhas, ainda que com as limitações naturais de idade mais elevada, possam exercer atividades físico-laborativas e intelectuais normalmente. Já se poderia considerar uma agressão à dignidade dos idosos crer que os de antigamente fossem incapazes intelectualmente automaticamente aos 70 anos de idade, visto que a história nacional (e mundial) possui diversos expoentes, não só na área jurídica, que produziram trabalhos memoráveis.
O Estatuto do Idoso tem como objetivo assegurar direitos e criar um microssistema de proteção e apoio ao idoso. Antes mesmo da existência desse diploma jurídico já seria possível, através da principiologia de proteção à pessoa existente na CRFB, deduzir que o idoso não é um ser incapaz justamente por ser idoso. Transformar um estágio natural da vida humana em presunção total de incapacidade é um completo contrassenso social.
Impedir o servidor idoso de exercer suas atividades profissionais quando apto é algo que fere sua dignidade e é o Estado atuando de maneira discriminatória. O idoso, em muitos casos, possui uma emotividade mais diferenciada e, com isso, a chance de desenvolver problemas depressivos pode aumentar e, contraditoriamente, fazer com que a sociedade despenda recursos para o tratamento médico e psicológico daquele cidadão.
Logicamente que toda uma gama de patologias “específicas” para idosos pode vir a afetá-los e transformá-los, nos casos mais graves, em relativa ou absolutamente incapazes de fato ou de direito. Nesses casos, o afastamento das atividades laborativas é medida de proteção para a própria pessoa e, indiretamente, proteção do bom funcionamento das atividades da Administração Pública.
É consenso que os idosos possuem uma limitação natural por conta da própria idade. Porém, como regra geral, sua experiência de vida pessoal e profissional pode vir a ser útil para o trabalho. Logicamente que o mero fato de alguém ter mais ou menos idade não a torna “voz da sabedoria profissional ou pessoal” dos fatos.
Outra questão fundamental que possui interdependência com a longevidade do idoso é que o mesmo, quando em atividade, não representa um forte encargo para a Previdência, pois contribui para a mesma e mantém-se trabalhando. Isso possibilita que o arrecadado seja destinado a pessoas que realmente necessitem de algum auxílio governamental. Não é raro nos dias de hoje que os aposentados exerçam outra atividade econômica a fim de cobrir os gastos pessoais e familiares. No caso de agentes públicos é possível verificar que vários ex-ministros dos mais diversos tribunais, ao serem aposentados compulsoriamente, passaram a advogar.
O mesmo pode ser dito de um professor universitário altamente qualificado que, ao atingir 70 anos de idade e com uma vasta gama de conhecimentos que poderiam ser utilizados pela Administração, deixa de ser aproveitado. No caso de ex-ministros acima mencionados, cria-se uma situação peculiar: a pessoa é aposentada e começa a receber proventos com base em uma imaginária incapacidade intelectual e profissional e, ao mesmo tempo, passará a atuar na iniciativa privada, certamente sendo muito bem remunerado. Essa boa remuneração advirá dos anos de experiência e do próprio conhecimento adquirido. Ora, é uma situação esquizofrênica criada pelo próprio Estado, já que este procura ser eficiente na gestão dos gastos, especialmente na área previdenciária, e ele mesmo possui um mecanismo que ajuda a cria-los em momentos desnecessários.
Mais um ponto a ser destacado é que, por conta das diversas emendas constitucionais que alteraram as regras previdenciárias do servidor estatutário (e outras diversas e complexas regras de transição entre as emendas), a aposentadoria compulsória acaba por ser almejada por muitos servidores que não desejam ou não podem se aposentar em “outra modalidade”. Servidores que “contam os dias” para a aposentadoria demonstram possuir um enorme espírito de frustração com a própria função ou o trabalho em si, passando a enxergar a atividade laborativa pública como um mero transcurso temporal entre o dia seguinte ao recebimento dos valores do contracheque e o último dia antes do próximo recebimento.
Com as mudanças no mercado de trabalho, não é incomum que muitas pessoas “experientes” troquem a iniciativa privada pelo serviço público ou, o que é cada vez mais comum, que jovens estudem por anos para poderem ingressar em uma carreira atraente na área pública. Assim, o elastecimento da idade limite lhes será benéfico, pois poderão se aposentar pelas regras previstas no serviço público; poderão usar o tempo na área pública para somar com o labor na área privada ou, o motivo mais nobre, continuar a prestar serviços para a sociedade por mais tempo, mesmo já podendo se aposentar.
Aos servidores que, podendo solicitar a aposentadoria, permanecem em atividade, é concedido o abono de permanência. O pagamento do referido abono é vantajoso para ambas as partes, haja vista que o servidor, na prática, “deixa” de pagar a contribuição previdenciária (o abono corresponde ao valor descontado) e o governo economiza com a permanência do referido servidor. A economia advém do fato de ser mais barato manter o pagamento do abono a um servidor experiente na atividade a ter que arcar com a aposentadoria e a inatividade do mesmo. Além disso, para a própria atividade há vantajosidade, pois mantém uma pessoa experiente atuando em determinada lotação, evitando-se, assim, demorados e custosos procedimentos de remoção, abertura de concursos públicos, vacância no setor/localidade de lotação…
O aumento da idade também pode ser entendido como uma valorização do trabalho da pessoa que possua condições e disposição para se dedicar ao mister público. “Jogar fora” anos de experiência profissional por conta de uma previsão legal e constitucional equivocada é demonstrar que o Estado atua da maneira menos eficiente possível, afrontando violentamente o princípio constitucional da eficiência.
Existem linhas argumentativas, defendidas especialmente por setores da magistratura, que entendem que a limitação aos 70 anos é benéfica por proporcionar uma oxigenação e entrada de novas ideias, afastando determinadas “oligarquias” da cúpula dos tribunais. A referida linha argumentativa é instigante e merece uma análise mais pormenorizada.
Os setores, incluindo os da magistratura, que criticam o aumento do limite etário o fazem sob a alegação de que novas pessoas atingirão os cargos mais rapidamente e poderão renovar os entendimentos, recebendo as confluências dos novos tempos. Além disso, poderão ser promovidos em menos tempo.
Averiguar a aposentadoria compulsória sob o prisma da promoção é observar a temática por um prisma egoístico, pois deixa de lado toda uma gama de situações que afetam milhares de cidadãos e servidores, bem como o quadro orçamentário nacional. A questão da oxigenação de ideias e mentalidades é mais profunda do que a mera ilação que os mais jovens são mais revolucionários que os mais velhos.
Um magistrado mais idoso e “conservador” necessariamente não será mais maléfico ou benéfico que um magistrado jovem e “liberal”. A diversidade de ideias é fundamental na atividade jurídica e muito salutar para conter os abusos das maiorias de ocasião ou excessos de “minorias”. Outro ponto é que a idade, por si só, não pode ser parâmetro para aferir uma melhor ou pior atividade à análise jurídica. Experiência de vida, formação pessoal (família, nível social, instrução educacional), aperfeiçoamento profissional, temperamento e vivência na área são fatores que ajudam e certamente contribuem para uma análise racional e menos passional das questões.
Recentemente, os Tribunais Superiores vêm proferindo decisões de vanguarda, garantindo ou reafirmando direitos fundamentais para grupos excluídos, além de efetuarem interpretações que se coadunam com grau axiológico esperado em sociedades avançadas. E, como prova de que mais idade não significa ser um “reacionário” que ignora as novas questões sociais, os ministros são, obrigatoriamente, maiores de 35 anos e já atuam profissionalmente há bastante tempo.
Certamente haverá membros extremamente conservadores ou extremamente revolucionários e, dependendo da situação, isso poderá ser bom ou ruim. Contudo, Justiça é equilíbrio e sensatez, sendo que os órgãos colegiados permitem o debate de ideias e o atingimento de um “voto médio”. Uma medida salutar para permitir a oxigenação permanente das ideias é o oferecimento e aproveitamento efetivo de cursos, palestras, seminários, jornadas… A constante atualização e busca pelo aperfeiçoamento intelectual deve ser incentivada e difundida pelos mais diversos tribunais, de modo a atingir magistrados e servidores.
Quanto ao argumento de que a elevação da aposentadoria compulsória ajudaria a manter “dinossauros na magistratura”, dificultando ou impedindo uma modernização ou arejamento nos diversos tribunais, é preciso verificar mais detidamente a questão.
O Poder Judiciário não está imune a membros corruptos e que não fazem jus ao cargo que ocupam. Também é fato que há determinadas “correntes” nos tribunais que se eternizam nos cargos de direção, contribuindo para uma falta de ar novo. Contudo, correlacionar a elevação da idade da aposentadoria compulsória dos magistrados com a necessidade de afastar os “dinossauros”, apesar do seu forte apelo retórico, nem de longe é uma solução, total ou parcial, da questão.
O fato de um “dinossauro” atingir os 70 anos e ser obrigado a deixar o tribunal não necessariamente promove a pretendida oxigenação, tendo em vista que o magistrado aposentado possui fortes alianças no órgão. Assim, a influência de uma “corrente política” dentro do tribunal possui grande probabilidade de se eternizar por mais tempo, ainda que um ou outro “líder” deixe a toga por conta da idade.
Deve-se ressaltar também que a própria falta de democracia na eleição dos cargos de direção dos tribunais contribui e muito para a manutenção de “grupelhos” e/ou “afilhados”, tendo em vista o limitado número de membros votantes. Não é a toa que as associações de classe dos magistrados pleiteiam a participação de todos os membros do tribunal na eleição, de modo a dificultar a eternização de determinada “corrente política” e também pelo fato de que uma decisão da cúpula afetará a todos e, por tal razão, faz-se premente a maior participação dos que sofrerão as consequências.
Rodrigo Duarte
(Artigo publicado no site Conjur – 23 de abril de 2014)